sempre algo por dizer
quanto mais confusa a fala
fica a esperança de que talvez
esteja o afeto sendo entregue por outras vias
sempre algo por dizer
quanto mais confusa a fala
fica a esperança de que talvez
esteja o afeto sendo entregue por outras vias
- Estou farta do peito de leite finito, ela continua
Farta do colo que enfim aquece o frio outrora posto
Do carinho que afaga a saudade
do instante do alívio que precede um novo período de angústia
de fome e de frio
Da mesma forma se vê cansada de acreditar que esse peito deveria jorrar fonte láctea infinita
Humanamente, o leite foi suficientemente produzido para uma mamada
(afinal, o bebê não sabe pedir para parar, o peito faz isso por ele)
Um peito suficientemente bom
para um bebê suficientemente satisfeito
Na sua história percebe que, angustiada pela angústia,
mordia e ainda morde qualquer peito que quisesse alimenta-la
(afastando-os em brasas, queimados para que não atrapalhem sua fantasia de paraíso)
ao mesmo tempo que suga todo o leite, e mais um pouco, não satisfeita com o satisfatório
até que fica cheia, bem cheia
mas no desejo de ficar bem cheia, vomita
e fica vazia, bem vazia
- Já pensou em trocar esse modelo por outro em que
não se pode dar todo o leite a alguém, mas se pode dar algo
assim como não se pode receber tudo de alguém, mas se pode receber algo
Talvez você se veja mais livre, continua a outra voz
Nunca vi que Cristo, Maomé, Buda ou quem quer que seja
dizendo que precisamos destruir o outro parar sermos felizes e livres
(Você confundiu o Paraíso com o Inferno)
Don't you know, you fool
you never can win, ele canta
- Estou farta de insights, ela diz
e de epifanias
e de clarão momentaneamente aceso
para imediatamente se esvair
restando somente aquela sensação escura somada a de que logo agora pouco se pôde enxergar tudo
Viento, que viene de la montaña, ela canta
em dias que essa claridade vem rasgante, feito raio que ruge
A Luz vai ganhando um ar de temor ao de amor
engraçado, assim como lhe diziam seus pais
mas foi necessário que seus olhos testemunhassem, ofuscados, a essa vertigem enlouquecedora
(experimente olhar nos olhos das estrelas em noite de Lua nova, entenderá sobre essa vertigem)
Acontece que quando tenta amarrar suas idéias clareadas em salvas
se engana
para si mesma
sem saber como e nem por quê, mas sabe quando
É quando, ao invés de pausas,
preenche o silêncio
o satura
o esgota
com falas que eclipsam sua chegada mais perto (demais) daquele seu
infamiliar (o claro e o escuro)
No exato instante de Luz
é arrebatada de saudades de toda vez que ela esteve aqui
e ainda mais saudades desta, de agora, que rapidamente se apagará
É cíclico seu destino
(assim como o é nossa esperança de crísticos retornos - promessas eternas depositadas à prazo)
A Luz chega fálica, príncipe da salvação, chega como há de ser: irradiante
e como há de ser, ofuscante
rasga a demorada escuridão com um espetacular e soberbo vislumbre
Enquanto isso boceja, já cansada desse showzinho,
a Escuridão
que ali tudo habita, habita no sempre e no tudo
sabendo que essa filha vez por outra aparecerá ali
veloz
fugaz
sopro divino
alimentando, onde toca na Terra,
uma fogueirinha
Penumbra de Fé
singela
meio magrela e também meio firme
bem ela
Termina com eles cantando, you have proved to be a real human being, and a real hero
qual vazio deixa a casa que queima sua última brasa?
(devaneios:)
Sinto que seria culpada pela forma que morri
ficariam eles bravos do como fui me meter nessa
"eu sempre avisei", diriam eles, eternamente
até que chegassem suas vezes
e talvez até assim, do lado de lá, seguiriam com a soberba indignação
Aliás, o que é esse tal lado de lá?
Parte I: Acabou pra você, mocinha
Perceberei ter partido uma vez iniciada minha retirada desse mundo que
malemal conheço?
Serei acudida por algum outro alguém da mesma matéria que a minha?
Ou será que está correta a previsão de que ficarei deitada na posição que fui enterrada
assistindo do teto do fundo do chão à minha vida
em play e replays eternos
cada gafe, cada birra, cada grito
cada beijo, cada gole, cada mexida de mãos sobre os cabelos
cada onda do Rio Tapajós, também, espero
Até que a terra, essa linda Terra, vai estremecer e nos parir novamente de dentro de seu ventre
renasceremos em carne e osso uma última vez, seremos julgados por aquilo que
fizemos, assistimos, reassistimos: uma única chance foi dada, uma única opção foi escolhida
- acabou pra você, Mocinha, dirá Deus através de alguém que talvez fale minha língua
agora é só céu
agora é só inferno
pra sempre, e sempre e sempre e depois mais pra sempre, sempre, sempre mesmo
seus amados foram eternamente para outro recinto que não o seu? lamento, é pra sempre
percebe hoje algo que te faria agir diferente, lamento mesmo
É Clemente, Misericordioso, Misericordiador até o dia do Juízo Final
E depois desse dia?
Acabou pra mim
e para todos nós, que em maior ou menor grau, pecamos
Parte II: Vai trabalhando enquanto isso, minha filha
Ou será que posso confiar na alternativa, que infelizmente não tem o peso de registro infantil que tem a primeira opção,
que diz que serei acolhida e acompanhada até lentamente despertar parra uma forma de vida sutil
talvez um umbral, não sei, com dificuldade de enxergar padrões vibracionais mais altos,
porém com a generosa chance de despertar internamente e rogar ajuda aos Superiores (todos eles incluindo Deus) para iluminarem minhas trevas
podendo enfim ser hospitalizada ate me recuperar das cracas imorais
reencontrar meus familiares já desencarnados
relembrar, novamente sublinho, acompanhada, o que me aconteceu encarnada
quais eram os planos, qual o plano da próxima
e não aguardo a decisão divina deitada ociosa: trabalho, sirvo, ocupo tempo exercitando uma vibração mais elevada
me conforta essa fábula mais que a primeira
(talvez more nesse 'conforto' a crítica dos que optam pela primeira: com mais conforto e menos temor, corre-se o risco de se estar mais alienado ao longo dos dias, menos noiado com a hipótese de que o inferno pode acontecer - ainda mais do que um possível inferno já instalado.)
Parte III: fim, finito (ninguém dirá nada)
acabou, acabou
fim, finito
puf, o que é carbono continua sendo carbono
as larvas o realocam em outro fluxo de outra vida
tudo o que aqui foi vivido era e seguirá sendo um (vazio) mistério
nada nem ninguém dirá "meus parabéns"ou "que decepção" sobre a vida outrora acesa, agora, apagada
botão liga e desliga
e quanto à corrente elétrica que eletrizava o corpo agora em putrefação
apenas se foi
pura solidão
Posfácio: quando, como, por que e com quem começa o posfácio?
Importante ressaltar que as poucas opções de resposta até agora descritas não são relevantes quando a grande questão é: eu posso morrer antes mesmo de terminar essa frase
posso morrer jajá, posso morrer daqui cem anos
a questão não é pra onde iremos
mas quando (e como? morrerei de forma estúpida? morrerei heroicamente? saberei no dia da minha morte que morrerei? saberei que morri após tê-lo feito?)
e por que nesse quando
e o que fica de vida interrompida
e do restante de vidas que seguem vivas (estarão bravas com minha partida? se lembrarão de mim? conversarão comigo de forma que eu consiga escutá-las?
na misteriosa rotina de viver
até que
puf
acabou
quem estará comigo?
alguém virá?
Desceria na estação Paulista, tudo normal como sempre. Medular até a baldeação.
Segundos anteriores me ocorrera a agradável - parecia agradável - lembrança de uma frase marcante, dentre várias, de hoje: “A morte é o centro da minha vida”.
Abro os olhos e me vejo completamente perdida, espacial e internamente. Eu já não estava dentro do trem: estava do lado de fora da estação errada. Não havia baldeação, não havia retorno, não havia saldo.
Tentava recalcular a rota mas não sabia nem onde me perdera. Esfrego as mãos na cabeça na tentativa de delimitar meu corpo existente dentro de um complexo mundo óbvio. Havia me perdido nesse lance de vida e morte: si-mul-ta-nea-men-te encarnadas. Ou também, caso eu queira me alienar de mim mesma, na estação Oscar Freire.
Afinal, não foi agradável assim: no ato, adiantei a morte para uma estação antes. Ela é tão intolerável que às vezes só queremos que ela chegue logo e acabe com essa paúra.
13:38 agora, aterrizo na estação Ana Rosa, em mim também.
Parte I
Somente pelos corpos colados se intimam
Se engraçam
se invadem
Se perdem
se evadem
Se contorcem
se misturam
Se penetram
se molham
Se aterram
Se incendeiam
Se encontram
se são
Somente ali
se verdadeiramente são
A si, cada um
também a ambos
Vislumbra-se a perdição da tentação da tão união da paixão
Parte II
Infelizmente, somente ali
Tanta falta de intimidade
sequer é possível se invadir
no corpo não tocado pela pele
a intimidade evapora
nem pernilongo
nem formiga
nem muriçoca
ou mesmo borrachudo
coça mesmo feito picada de mutuca
- demora muito?
- demora fundo
Revivo nossas memórias no repeat
tentando enjoa-las
Como música que é incrível, como você diz, “muito intensa no começo”
mas de tanto tocar
evolui de música favorita para música insignificante ou até repulsiva
Mas essa história que dou play
da que teve e da que não teve
Parece ser como aquelas músicas
Clássicas
Eternas
Inenjoáveis
Cada vez que escuto percebo um encanto em algum canto
e lamento que toda música tem que acabar
- Rhye, Song for you
- Freya Ridings, Lost without you
- Portishead, Glory box
- 5 a seco, Pra você dar o nome
- Marisa Monte, É doce morrer no mar
Que é melhor
Do que sofrer de saudade de mim como eu tô de você
Essa dor eu não quero pra ninguém no mundo
Imagina só
Pra você
Quando voltares
se voltares
estarei melhor
Não por causa de ti
mas também
Enquanto isso a gente vai fingindo que o outro não existe
esquece do filme, há de ter ficado em cartaz eternamente
esquece, se é que é possível, do nosso toque incendiário
Até que, pouco a pouco, borramos a memória dos nossos rostos
a conversa do whatsapp vai ficando longe, perto de outras pessoas esquecidas
o waze não sugere nossos endereços
o teclado não sugere teu nome, sugere sílaba única, dor
Assim a vida vai imitando a arte
e há de imitar nossas forma-pensamento-fingimento
Como me sangra a Bruna (enquanto espero que nunca chegue nenhum dia se não aquele primeiro):
Eu também
me sentiria presa à culpa do sonho que não se seguiu
à raiva por quem não deixou sê-lo
ao amor que sustenta toda essa ilusão
Ou essa intuição
Ou mesmo esse destino
Não sei por que dizes que não
afinal, falar isso, que já passou
não há de ser real
"Não queres me magoar", acredito
quando quero ver teu traço zeloso
"Não acessas isso", acredito
quando penso que você falava sério que terapia te faria um bem
Não pretendo disputar com seu amor,
seu sonho,
e seu sonho de amor
Respeito o seu
assim como o meu
Desejo que ambos de nós
ou, pelo menos um,
encontremos aquilo que hoje
ambos desacreditamos existir
Estamos blues
Eu, blue por ti
Você, por ela
a mancha de cerveja derramada na varanda: está pegajosa demais, atraiu formigas
a garrafa de coca no carro, da praia: só não andei dirigindo, então não a vejo
a mecha de cabelo gentilmente acariciada: lavei
a fronha do travesseiro: faxina hoje
as mensagens que chegam nos sonhos: hoje mudaram completamente, agora aterrorizantes
cheiros de apego parte II
uma poesia por dia
uma prosa imaginária por noite
essa tal presença na ausência
inclusive agora se faz
mais concreta que outrora
te sinto, te ouço
sinto o toque que cafuneza
tão forte quanto escuto tuas respostas
que chegam às vezes a doer como tapas secos
pena que, por vezes, escuto borrado o eco do silêncio
se confunde
"ão, ão, ão"
estarias dizendo "pega minha mão, ão, ão"
ou o que diz é
"não me procure não, ão, ão"?
sei lá eu, só escuto ão
deito de volta ao mundo dos sonhos onde se pode voar
"ar, ar, ar"
acabar?
voltar?
dançar?
falar?
ignorar?
sustentar?
ficar?
matar?
tratar?
sonhar?
cozinhar?
piranhar?
sabotar?
fumar?
cuidar?
pirar?
gorfar?
espanar?
bancar?
chorar?
gozar?
que porra de eco "ar" é esse
os laivos do Sol que se vai
entre prédios
atrasam tua terminal presença
(eu insisto)
os laivos do sangue que escorre
de mim
antecipam minha cíclica melancolia
(não controlo)
solar, as vinte e quatro que poderiam ser mil horas
lunar, os vinte e oito que poderiam ser mil dias
(não puderam)
tua presença
poente
minha sentença
descamada
De nós, que não chegamos a ser
sobram nós na garganta
Coração engasgado
Ando confusa, bem confusa
E agora faz como?
Com a saudade?
Com a vontade de conversar?
De dançar ou de rir ou de chorar na sua companhia
Faz como?
Será que está tudo conjugado no passado, mesmo?
“Estava, amei, era, foi”
Seu olhar está fotografado aqui dentro, no presente do indicativo
e até no gerúndio
e eu amo essa fotografia
Queria te ouvir mais falar das suas feridas, te beijar e dizer que dói mesmo e que vai passar
e, quando quisesse, estaria ao seu lado, segurando sua mão
Queria você-pacote-completo:
amores, dores,
doçuras, amarguras; todos os sabores
Queria viver uma dor e um amor juntos.
Te mandar uma carta de amor.
Receber um café da manhã sem dor.
Queria
e se você alguma hora quiser
quero
a brisa gostosa do vento
hoje
dói
sobre a pele
do corpo que se percebe corpo
descorporificado à medida que se dissolve na saudade
de quem eu realmente queria
que me tocasse
como brisa gostosa do vento
à flor da pele
à árvore paraense da pele
a mancha de cerveja derramada na varanda: não limpo
a garrafa de coca no carro, da praia: não jogo
a mecha de cabelo gentilmente acariciada: não lavo
a fronha do travesseiro: não troco
as mensagens que chegam nos sonhos: não mudam
cheiros de apego
- Me parece que você está muito triste hoje. E o jeito que você conhece de lidar com a tristeza é se machucando ainda mais.
o chinelo, dessa vez, ficou no capacho
e eu, como de costume, deixei a porta aberta
apesar de uma chave por dentro e uma chave esquecida por fora
você já não esqueceu mais nada aqui em casa
nós já não tínhamos um segundo encontro marcado mesmo antes do primeiro
o último beijo já tinha sido beijado,
eu só não sabia ainda
(mas sabia de alguma forma)
pode entrar
pode trancar
não, não pode entrar
não pode partir
não tão cedo
não tão tanto
mas não teve como
a porta destrancada foi aberta
o chinelo já estava ali
a chave de dentro seguiu imóvel
enquanto as lágrimas se moviam em busca do mar
você chegou molhado de água de cima
saímos molhados de água da dentro
Segurar delicadamente o pincel
que repousa sobre o
quadro do rosto e da alma
Pintar-se
Se arter
Sempre que o odiado se manifesta
o odiento se manifesta
E quem se manifesta quando ambos adormecem
ai dentro
de ti?
o que aconteceu foi
que temi te amar
temi que, te amando, te destruiria
afinal, uma hora você estava
na outra, partia
achei que a cada partida me dilacerava
talvez fosse uma vingança, um castigo? e já alia nascia
em mim a noção de pecado
(ou assim mais tarde fui nomear algo já familiarizado)
não quis me sentir digna
não quis nunca mais botar pra dentro
algo que vinha tão sincero
tão humano
tão materno
passei e ainda passo anos
em que, sempre respondendo mal a todo tipo de restrição,
compensava, compulsivamente, arrecadando tudo aquilo que insisti em descartar
e bota pra dentro, bota pra fora
pra dentro de novo, pra fora de novo
até chorar
até sangrar
linda e metaforicamente
a vida vai se manifestando
e agora vejo, percebo, ilumino
(mas, tenha paciência, aos poucos elaboro)
o quanto eu quis ser medonha
por ser medrosa
por ser voraz
por ser insaciável
por ser frágil
por ter inveja
por ter um horripilante temor de sucumbir
me perdõe
por esse amor que rejeitei
persistentemente empurrei da cama
lamento muito, até o asfixiei
fui bruta, precisei ser
sentia que estava me defendendo de algo que eu não suportaria
e hoje me pergunto
será que amor é mesmo um perigo tão grande que eu não possa tocar?
- você não teme que te deixem,
isso você projeta nos outros
porque é você quem se assusta com o perto demais (do broto amoroso)
- e não é do medo de que te vejam os defeitos,
é de que você não possa tolerar a ruína
da sua ideal perfeição (da voz-deus-mau-interno-enlouquecedor, que é sua agora)
[ voz da narradora: quanto mais esforço pra me tornar essa anja, como você diz,
mais acaba que afasta mesmo, isso vem pra somar na estratégia de arruinar tudo
pra me proteger desse broto desconhecido]
- quando exercita esse broto de amor,
você imagina que vão usar isso contra você
mas não vão
- você não quer mais carinho de alguém,
você quer receber esse carinho de você mesma
- você me parece estar contendo,
afinal você subiu até o décimo quarto andar
no dia que acidentalmente apertou o térreo
("acidentalmente")
- vocês duas tiveram uma conversa muito íntima,
e apesar de dizer que está tudo desmoronando
a primeira coisa que você trouxe pra sessão foi essa conversa
- você quer reconstruir um Deus bom
feito wasabi
feito pimenta
feito jiló
feito mostarda também
e até queijo de cabra
brota assim
aversivo
picante
amargo
esquisito
forte de um jeito ruim
feito sushi, no primeiro dia:
pelo que recomendavam, o sabor devia ser algo como
o bolo molhadinho de recheio de nozes, chantilly docinho, igual ao do meu casamento
na verdade, igual de vários dos meus aniversários de criança
palitinhos, chamados assim, tristemente, os hashis
sambam, também tristemente, sobre a fina e crua superfície laranja
essa então chega molenga derretendo na boca
surpreendendo com um surpreendente sabor de
eca
sai
a peça desfeita na saliva exige uma grande capacidade de persistência
feito isso, é esse broto que brota
feito o zaatar que esverdeou essa semana
e que parece que vingou e quer vingar
brota aversivo, picante, amargo, esquisito, forte de um jeito ruim
brota com dor, parecendo um novo trauma adiante
ou brota da dor, depurando, com seus espinhos, a película protetora
da membrana descontente que pede por descontenção
brota porque há um espaço
brota pedindo por mais espaço
e agora, o que eu faço?
deixo chegar?
- mas o medo é da partida
então deixo partir?
- na verdade, o medo é de que queira permaneçer
o medo afasta,
mal sabendo, a voz-deus-mau-interno-enlouquecedor,
que a hora que o wasabi chega junto com o sushi na boca
um novo desconhecido é reencontrado
e de repente
wasabi tem gosto de bolo molhadinho de nozes do meu aniversário
Talvez fosse eu a sereia da borra do café
à margem da falésia
com os cabelos arrepiados indicando uma queda
mas a cauda, sentada, hesita
Sensação de que algo não foi dito
será se ainda imaturo para se revelar?
O que seria?
Talvez uma tristeza tenha se instalado gota à gota
trazida pela chuva dominical
O céu perdeu suas cores há alguns dias
mas quando se está acompanhado
de si ou de alguém que o valha
resistem tons e sobretons celestiais
Talvez também seja a simples roda da vida
girando, bela
e afiada
feito makita
que grita
hipnotizando para o abismal suspense de como seria tocá-la
Mesmo não escorrendo o sangue fantasiado
os dedos coagulam-no em suas pontas
traumatizados pela pura idéia do trauma
Sei que isso tudo cabe a mim
e talvez
seja por isso que quem quer que seja
me colocou sentada nessa queda
sendo do mar, estando na terra, suspensa no ar
e aquele fogo
incendeia
dos sobes e desces
da impermanência da vida
hoje sou convidada a descer
dos verdes, amarelos
e, posso jurar, azuis
pedaços da Terra em seus olhos
hoje vi a fumaça de alguma floresta incendiada
afinal, quem provocou o incêndio?
provoca-lo-amos juntos
ou teríamos simplesmente nos atirado às chamas
já anteriormente acesas?
por sei lá quem
mas deve ser desse mesmo "quem"
o convite a descer
encerra mais cedo o cafuné maternal
tira minha coberta
abre as cortinas para uma luz ainda Jabez
o quem me diz para somente estar
ontem Clarice disse para marchar
fico no acampamento dos perplexos
perplexa por saber que a descida chegaria
mas perplexa por sempre acreditar que pode tardar
ou talvez, nunca nem chegar
estar sozinho e muito bem acompanhado
com o silêncio do ar puro
da água tilintante
dos cães das lágrimas
o pensamento sossega
distraído com a imensa beleza do céu pintado
deixa espaço para o sentimento
para a sensação e para a intuição
o corpo destenciona
lavado pela delicada força do rio
massageado pela areia ainda molhada da chuva forte
volta a ser corpo
a alma desperta
pede licença para entrar no rio, pede licença para adentrar a floresta
recebe benção dos encantados
derrete-se de um amor calmo
um amor brisa
um amor sol pós tempestade
um amor verde, bem verde, bem vivo
sou bicho
sou sozinha na cidade superpopulosa
sou multidão em ti, Amazônia
cada dia de um jeito novo
é tanta chuva despencando
o rio engorda, as árvores encurtam
os bichos ficam famintos de nos arrancar pedaços
para voltarmos em busca destes
nossa alma também é capturada
ressoa com o balanço das árvores e o canto das aves
no grandioso Céu, Deus pinta um novo quadro cintilante por dia
o horizonte aponta para nosso dentro
o contrário do horizonte é aqui
.
todo dia de um jeito meio igual
é tanto carro poluindo
o ar escurece, as árvores sufocam
nos tornamos bichos famintos de recuperar a inteireza
de relembrar sermos também natureza
nossa alma adormece narcótica
padece com a rigidez dos prédios e do grito engaiolado
no recortado Céu, o homem atrapalha a arte divina
o horizonte é mera ilusão
o dentro aponta para fora