quinta-feira, 5 de maio de 2022

Cinho (o quadro de Pin)

Lá no campo há um belo rio
águas tão lisas quanto lençóis de cama de hotel
jamais se poderia predizer a força de sua correnteza

Quem está à sua margem se encanta com troncos que navegam
com flores que escorrem sem oferecer resistência alguma ao destino 
e até com uma espécie de animal muito diferente que tem
um casco que parece um casulo
um rabo que parece de cobra
uma textura que parece de molusco
uma boca que morde como tartaruga
e com asas de borboleta

Esse estranho animal também é levado pelas águas
Em águas calmas, casco para cima, ele nada lindamente em nado borboleta
se delicia com a liberdade
respira muito bem dentro e fora da água

Eis que venta forte, fecha o tempo, nuvens carregadas rapidamente inundam o volume do rio
com águas lamacentas e turvas
Alvoroçado, reflete sua força arremessando com velocidade a tudo 
aos troncos
às flores
ao pobre animalzinho
Somente as pedras ficam firmes
os demais ora batem nas pedras, ora se debatem

Intuitiva e instintivamente
o animalzinho, chamamo-lo de Cinho, se vira em seu eixo
abandona o nado borboleta
transforma seu casco em barco
e vai

Vai meio anestesiado
vai com medo
vai de ponta cabeça
vai com as patinhas viradas para o casco, não podendo segurar nenhuma corda que lhe jogassem
Corajosamente, confia

Um fio de consciência se mantem ali
e desperta somente em bifurcações do rio
Rapidamente escolhe por qual direção seguirá
tem um breve vislumbre do que é estar vivo, mas retoma a jornada acelerada da correnteza
Cinho, apesar de quase adormecido, tem muito medo
tem pesadelos
às vezes sente que já morreu
ou que queria morrer
Bate nas pedras, bate no casco de outros Cinhos
se bate

E assim o rio, chamado Tempo, carrega Cinho
A distância que Cinho alcança com toda essa turbulência é imensurável
infinitamente maior do que a que alcançaria caso nadasse seu lindo nado borboleta
Tempo, o rio, uma hora encontra o fim de um ciclo
Mergulha aos poucos na terra formando invisíveis lençóis freáticos 
fazendo as pazes com a margem
e deixando com que o tronco, a flor e Cinho, repousem dessa longa viagem

Cinho acorda aos poucos do seu sono
do pesadelo, talvez diria
Sua cauda ofídica se espreguiça na brisa suave, troca a pele por uma nova que lhe caiba
Seus olhos repousam sobre um céu azul, limpo de nuvens
Suas asas amarrotadas fazem um iniciante movimento de recomeço
Então, com suas patinhas, faz um suave balanço para se virar para baixo

As águas, agora delicadas como seda, acariciam todo seu corpo
Cinho se lembra dessa sensação, se lembra de estar vivo e de já ter vivido antes
Encorajado, renascido, se espreguiça bem gostoso
Suas asas fazem um gentil movimento de retirar o casco 
Agora o casco repousa na margem do Tempo
e Cinho se vê pronto para um novo passeio em terras firmes
Cinho quer agarrar bons laços com suas patinhas, Cinho é ótimo nisso

Assim Cinho seguiu
livre
risonho
leve
esperançoso
reminiscente de suas vidas prévias
se vê forte, se vê novo
tem sede de vida
e de compartilhar sua existência com todos que ali sentiam sua falta e com outros que terão o prazer de conhece-lo

- Importante, Cinho, que seu casco fique muito bem guardado. Logo logo, sem sabermos muito bem o porquê, você vai sentir saudades de nadar e até na lamacenta correnteza você vai se ver pronto para navegar. Pois vá, e volte, e vá e volte quantas vezes forem necessárias. Você é bom de nadar, bom de andar, bom de voar e, essencialmente, você é excepcional em viver!
 


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