domingo, 30 de janeiro de 2022

talvez

Talvez fosse eu a sereia da borra do café

à margem da falésia

com os cabelos arrepiados indicando uma queda

mas a cauda, sentada, hesita


Sensação de que algo não foi dito

será se ainda imaturo para se revelar?

O que seria?

Talvez uma tristeza tenha se instalado gota à gota

trazida pela chuva dominical


O céu perdeu suas cores há alguns dias

mas quando se está acompanhado

de si ou de alguém que o valha

resistem tons e sobretons celestiais


Talvez também seja a simples roda da vida

girando, bela

e afiada

feito makita 

que grita

hipnotizando para o abismal suspense de como seria tocá-la


Mesmo não escorrendo o sangue fantasiado

os dedos coagulam-no em suas pontas

traumatizados pela pura idéia do trauma


Sei que isso tudo cabe a mim

e talvez

seja por isso que quem quer que seja

me colocou sentada nessa queda

sendo do mar, estando na terra, suspensa no ar


e aquele fogo

incendeia



desce

dos sobes e desces

da impermanência da vida

hoje sou convidada a descer


dos verdes, amarelos 

e, posso jurar, azuis

pedaços da Terra em seus olhos

hoje vi a fumaça de alguma floresta incendiada


afinal, quem provocou o incêndio?

provoca-lo-amos juntos

ou teríamos simplesmente nos atirado às chamas 

já anteriormente acesas?


por sei lá quem

mas deve ser desse mesmo "quem"

o convite a descer

encerra mais cedo o cafuné maternal

tira minha coberta

abre as cortinas para uma luz ainda Jabez


o quem me diz para somente estar

ontem Clarice disse para marchar

fico no acampamento dos perplexos

perplexa por saber que a descida chegaria

mas perplexa por sempre acreditar que pode tardar

ou talvez, nunca nem chegar



sábado, 8 de janeiro de 2022

amor verde e vivo

estar sozinho e muito bem acompanhado

com o silêncio do ar puro

da água tilintante

dos cães das lágrimas


o pensamento sossega

distraído com a imensa beleza do céu pintado

deixa espaço para o sentimento

para a sensação e para a intuição


o corpo destenciona

lavado pela delicada força do rio

massageado pela areia ainda molhada da chuva forte

volta a ser corpo


a alma desperta

pede licença para entrar no rio, pede licença para adentrar a floresta

recebe benção dos encantados

derrete-se de um amor calmo

um amor brisa

um amor sol pós tempestade

um amor verde, bem verde, bem vivo


sou bicho

sou sozinha na cidade superpopulosa

sou multidão em ti, Amazônia





sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

resta floresta

cada dia de um jeito novo

é tanta chuva despencando

o rio engorda, as árvores encurtam


os bichos ficam famintos de nos arrancar pedaços

para voltarmos em busca destes

nossa alma também é capturada

ressoa com o balanço das árvores e o canto das aves


no grandioso Céu, Deus pinta um novo quadro cintilante por dia

o horizonte aponta para nosso dentro

o contrário do horizonte é aqui

.

todo dia de um jeito meio igual

é tanto carro poluindo

o ar escurece, as árvores sufocam


nos tornamos bichos famintos de recuperar a inteireza

de relembrar sermos também natureza

nossa alma adormece narcótica

padece com a rigidez dos prédios e do grito engaiolado


no recortado Céu, o homem atrapalha a arte divina

o horizonte é mera ilusão 

o dentro aponta para fora