sábado, 17 de fevereiro de 2018

encosta no meu ombro

vem cá, meu menino
encosta no meu ombro
seu choro quente me aquece a alma
quisera eu pudesse estar dentro dessas lágrimas
há tanta vida nelas, tanta vida viva

essa sua dor de hoje me encheu de ânimo
esta dor de vestir um sapato que já está apertado
porque você vem crescendo
e há dor no crescimento
dores e perdas

"mas tem gente andando bem com seus sapatos
não têm mimica de dor ou de questionamentos
andam como se voassem, ou como se estivessem descalços"

pois é
mas cuidado com comparações
cada um tem o sapato que precisa vestir, pra criar os calos que precisa criar, pra andar nos ladrilhos que precisa pisar, pra chegar no destino em que precisa chegar
chegar para, então, talvez, trocar de sapatos, trocar de pisada, trocar de norte, ou talvez até, descansar 

se ao primeiro pé que encontra o chão, logo ao despertar, contássemos quantos passos são necessários a fim de chegar a um determinado fim, enlouqueceríamos
ou sequer desceríamos da cama
passo não foi feito pra ser analisado matematicamente
passo foi feito pra ser pisado
pra ser somado ao próximo e ao próximo
pra chegar num lugar diferente do cômodo agora

se ao primeiro penhasco hesitássemos
ajoelhássemos e gritássemos um ecoante pavor
jogássemos uma pedra a fim de ver como seria o espatifar da nossa queda
de ajoelhados, passaríamos a sentados, deitados, enraizados, ensolados e desolados
nos cegaríamos de tanto olhar o barranco
que não somaríamos - e agora sim queremos a soma - que dois catetos de caminhada
nos levam à hipotenusa do lado de lá
a resposta estava exatamente em não olhar pro lado de lá
mas em dar um passo aqui mesmo
do lado que ainda parece obscuro

se ao primeiro passo errado
ou até ao primeiro passo desistido
empreguiçado, desacreditado ou simplesmente esquecido
comprometeres a marcha
não se ajoelhe, sente, deite, desole
tentar e não conseguir não conta como um ponto a menos
soma um ponto a mais
parece uma matemática torta, e é

pois a intenção de movimento
já é um movimento
a elaboração de uma chegada
já é uma chegada

uma chegada ainda bebê
ainda criança
que virá no seu colo
com um ranho de um lado, uma lágrima de outro
pedirá seu colo
dirá que se sente sem forças e sem ganhos
te convencerá a dizer que, de fato, a falha dela a comprometerá pela vida toda, e que agora ela tem permissão de desistir e sucumbir
quererá que você assim o diga, para que ela possa, enfim, ceder à desistitude

por que ela faria isso?
ora
pergunte você mesmo
essa criança mora dentro de você
e talvez ela queira que você diga "desista"
exatamente porque ela sabe
crê
e tem fé
que você vai dizer exatamente o contrário

você dirá
- vem cá, minha criança. deita no meu colo. o que te aflige? 
eu te amo por você ser quem você é
cheio desses defeitos para poder contrabalancear as maravilhas que evaporam de seus poros
eu te amo pelos lindos edifícios que você constrói todos os dias e também pelos que estão não tão inteiros
eu te amo porque tudo isso me lembra que sou também humano, sou também criança e também choro
eu te perdoo por você não sentir o mesmo de si, por você, às vezes preferir não descer da cama
eu sou grato por fazer parte da sua existência, da sua linda jornada; sou grato pela sua saúde e plenitude
eu sinto muito pela sua dor
mas é na dor e nas ondas que quebram
que podemos optar
por passear um pouco na areia
ou por boiar em alto-mar