domingo, 1 de maio de 2022

morrer é estar acompanhado ou definhar na temida solidão da vida?

qual vazio deixa a casa que queima sua última brasa?

(devaneios:)


Sinto que seria culpada pela forma que morri

ficariam eles bravos do como fui me meter nessa

"eu sempre avisei", diriam eles, eternamente

até que chegassem suas vezes

e talvez até assim, do lado de lá, seguiriam com a soberba indignação


Aliás, o que é esse tal lado de lá?

Parte I: Acabou pra você, mocinha

Perceberei ter partido uma vez iniciada minha retirada desse mundo que 

malemal conheço?

Serei acudida por algum outro alguém da mesma matéria que a minha?

Ou será que está correta a previsão de que ficarei deitada na posição que fui enterrada

assistindo do teto do fundo do chão à minha vida

em play e replays eternos

cada gafe, cada birra, cada grito

cada beijo, cada gole, cada mexida de mãos sobre os cabelos

cada onda do Rio Tapajós, também, espero

Até que a terra, essa linda Terra, vai estremecer e nos parir novamente de dentro de seu ventre

renasceremos em carne e osso uma última vez, seremos julgados por aquilo que

fizemos, assistimos, reassistimos: uma única chance foi dada, uma única opção foi escolhida

- acabou pra você, Mocinha, dirá Deus através de alguém que talvez fale minha língua

agora é só céu

agora é só inferno

pra sempre, e sempre e sempre e depois mais pra sempre, sempre, sempre mesmo

seus amados foram eternamente para outro recinto que não o seu? lamento, é pra sempre

percebe hoje algo que te faria agir diferente, lamento mesmo

É Clemente, Misericordioso, Misericordiador até o dia do Juízo Final

E depois desse dia? 

Acabou pra mim

e para todos nós, que em maior ou menor grau, pecamos


Parte II: Vai trabalhando enquanto isso, minha filha

Ou será que posso confiar na alternativa, que infelizmente não tem o peso de registro infantil que tem a primeira opção,

que diz que serei acolhida e acompanhada até lentamente despertar parra uma forma de vida sutil

talvez um umbral, não sei, com dificuldade de enxergar padrões vibracionais mais altos, 

porém com a generosa chance de despertar internamente e rogar ajuda aos Superiores (todos eles incluindo Deus) para iluminarem minhas trevas

podendo enfim ser hospitalizada ate me recuperar das cracas imorais

reencontrar meus familiares já desencarnados

relembrar, novamente sublinho, acompanhada, o que me aconteceu encarnada

quais eram os planos, qual o plano da próxima

e não aguardo a decisão divina deitada ociosa: trabalho, sirvo, ocupo tempo exercitando uma vibração mais elevada

me conforta essa fábula mais que a primeira

(talvez more nesse 'conforto' a crítica dos que optam pela primeira: com mais conforto e menos temor, corre-se o risco de se estar mais alienado ao longo dos dias, menos noiado com a hipótese de que o inferno pode acontecer - ainda mais do que um possível inferno já instalado.)


Parte III: fim, finito (ninguém dirá nada)


acabou, acabou

fim, finito

puf, o que é carbono continua sendo carbono

as larvas o realocam em outro fluxo de outra vida

tudo o que aqui foi vivido era e seguirá sendo um (vazio) mistério

nada nem ninguém dirá "meus parabéns"ou "que decepção" sobre a vida outrora acesa, agora, apagada

botão liga e desliga

e quanto à corrente elétrica que eletrizava o corpo agora em putrefação

apenas se foi

pura solidão


Posfácio: quando, como, por que e com quem começa o posfácio?

Importante ressaltar que as poucas opções de resposta até agora descritas não são relevantes quando a grande questão é: eu posso morrer antes mesmo de terminar essa frase

posso morrer jajá, posso morrer daqui cem anos

a questão não é pra onde iremos

mas quando (e como? morrerei de forma estúpida? morrerei heroicamente? saberei no dia da minha morte que morrerei? saberei que morri após tê-lo feito?)

e por que nesse quando

e o que fica de vida interrompida

e do restante de vidas que seguem vivas (estarão bravas com minha partida? se lembrarão de mim? conversarão comigo de forma que eu consiga escutá-las? 

na misteriosa rotina de viver

até que

puf

acabou


quem estará comigo? 

alguém virá?



Um comentário:

Pedro Cavalcante disse...

A "Parte I" me faz lembrar de Adélia Prado.