qual vazio deixa a casa que queima sua última brasa?
(devaneios:)
Sinto que seria culpada pela forma que morri
ficariam eles bravos do como fui me meter nessa
"eu sempre avisei", diriam eles, eternamente
até que chegassem suas vezes
e talvez até assim, do lado de lá, seguiriam com a soberba indignação
Aliás, o que é esse tal lado de lá?
Parte I: Acabou pra você, mocinha
Perceberei ter partido uma vez iniciada minha retirada desse mundo que
malemal conheço?
Serei acudida por algum outro alguém da mesma matéria que a minha?
Ou será que está correta a previsão de que ficarei deitada na posição que fui enterrada
assistindo do teto do fundo do chão à minha vida
em play e replays eternos
cada gafe, cada birra, cada grito
cada beijo, cada gole, cada mexida de mãos sobre os cabelos
cada onda do Rio Tapajós, também, espero
Até que a terra, essa linda Terra, vai estremecer e nos parir novamente de dentro de seu ventre
renasceremos em carne e osso uma última vez, seremos julgados por aquilo que
fizemos, assistimos, reassistimos: uma única chance foi dada, uma única opção foi escolhida
- acabou pra você, Mocinha, dirá Deus através de alguém que talvez fale minha língua
agora é só céu
agora é só inferno
pra sempre, e sempre e sempre e depois mais pra sempre, sempre, sempre mesmo
seus amados foram eternamente para outro recinto que não o seu? lamento, é pra sempre
percebe hoje algo que te faria agir diferente, lamento mesmo
É Clemente, Misericordioso, Misericordiador até o dia do Juízo Final
E depois desse dia?
Acabou pra mim
e para todos nós, que em maior ou menor grau, pecamos
Parte II: Vai trabalhando enquanto isso, minha filha
Ou será que posso confiar na alternativa, que infelizmente não tem o peso de registro infantil que tem a primeira opção,
que diz que serei acolhida e acompanhada até lentamente despertar parra uma forma de vida sutil
talvez um umbral, não sei, com dificuldade de enxergar padrões vibracionais mais altos,
porém com a generosa chance de despertar internamente e rogar ajuda aos Superiores (todos eles incluindo Deus) para iluminarem minhas trevas
podendo enfim ser hospitalizada ate me recuperar das cracas imorais
reencontrar meus familiares já desencarnados
relembrar, novamente sublinho, acompanhada, o que me aconteceu encarnada
quais eram os planos, qual o plano da próxima
e não aguardo a decisão divina deitada ociosa: trabalho, sirvo, ocupo tempo exercitando uma vibração mais elevada
me conforta essa fábula mais que a primeira
(talvez more nesse 'conforto' a crítica dos que optam pela primeira: com mais conforto e menos temor, corre-se o risco de se estar mais alienado ao longo dos dias, menos noiado com a hipótese de que o inferno pode acontecer - ainda mais do que um possível inferno já instalado.)
Parte III: fim, finito (ninguém dirá nada)
acabou, acabou
fim, finito
puf, o que é carbono continua sendo carbono
as larvas o realocam em outro fluxo de outra vida
tudo o que aqui foi vivido era e seguirá sendo um (vazio) mistério
nada nem ninguém dirá "meus parabéns"ou "que decepção" sobre a vida outrora acesa, agora, apagada
botão liga e desliga
e quanto à corrente elétrica que eletrizava o corpo agora em putrefação
apenas se foi
pura solidão
Posfácio: quando, como, por que e com quem começa o posfácio?
Importante ressaltar que as poucas opções de resposta até agora descritas não são relevantes quando a grande questão é: eu posso morrer antes mesmo de terminar essa frase
posso morrer jajá, posso morrer daqui cem anos
a questão não é pra onde iremos
mas quando (e como? morrerei de forma estúpida? morrerei heroicamente? saberei no dia da minha morte que morrerei? saberei que morri após tê-lo feito?)
e por que nesse quando
e o que fica de vida interrompida
e do restante de vidas que seguem vivas (estarão bravas com minha partida? se lembrarão de mim? conversarão comigo de forma que eu consiga escutá-las?
na misteriosa rotina de viver
até que
puf
acabou
quem estará comigo?
alguém virá?
Um comentário:
A "Parte I" me faz lembrar de Adélia Prado.
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